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Sussurros Sinistros

Sussurros Sinistros

A Vampira frustrada e o Canguru Perneta

Terminei de ler Pandora, da Anne Rice. Anos atrás parei de ler este livro pela metade ao me deparar com o episódio lastimável onde Pantora tem uma péssima noite de núpcias com Marius e fica convencida de que o principal aspecto do “dom das trevas” (a transformação em vampiro) é a libertação da prisão dos conceitos de masculino e feminino. Eles estão em casa e tem cama, mas preferem transar no mato porque a dama não para de vomitar e largar outros dejetos por onde passa. Ela está doidona, tendo alucinações após beber o sangue de Akasha e já não sente partes do próprio corpo:

 

— Beba de mim — disse ele. — Beba até a dor passar. É só o corpo que está morrendo, beba. Pandora, você é imortal.

— Me complete, me possua — disse eu. Estendi a mão para tocar entre suas pernas.

— Agora isso não importa.

Mas estava duro, esse órgão que eu buscava, o órgão que o deus Osíris perdera para sempre. Guiei-o, duro e frio como estava, para dentro de meu corpo. Então fiquei bebendo, e quando senti novamente seus dentes no meu pescoço, quando ele começou a me chupar, sugando a nova mistura que corria em minhas veias, chupou com doçura, e eu o conheci e o amei e soube todos os seus segredos num relance que nada significava.

Ele estava certo. Os órgãos inferiores nada significavam. Ele se alimentou de mim. Eu me alimentei dele. Esse foi o nosso casamento. Em volta de nós, a relva balançava suavemente ao vento, um majestoso leito conjugal, e o cheiro do verde me inundou.[1]

 

Insatisfeita com a realidade dos fatos, ela espera alguns dias e tenta de novo por mera convenção social, certificando-se que o pênis do homem amado não lhe faz nem cócegas:

 

— Pandora, amo você! — exclamou ele desarmado.

— Ponha isso dentro de mim — disse eu, pegando o que ele tinha entre as pernas. — Me complete e me abrace.

— Isso é bobagem e superstição!

— Nada disso — disse eu. — É uma coisa simbólica e reconfortante. Ele obedeceu. Nossos corpos se uniram, ligados pelo órgão estéril dele que agora para ele era a mesma coisa que seu braço, mas como amei aquele abraço que ele passou em volta de mim e os lábios que ele encostou em minha testa.[2]

 

Não é admirável que logo no início a vampira mal afamada tenha visto algo de vampiresco no comportamento de um ser humano comum:

 

Vejo o velho francês que vem aqui há décadas só para olhar as pernas e os braços nus das moças, para alimentar-se dos gestos como se fosse um vampiro, para ficar esperado por aquele momento precioso e exótico em que uma mulher da uma risada e se recosta na cadeira com um cigarro na mão, e o tecido sintético de sua blusa fica esticado no busto, revelando os mamilos.

Ah, velho. Ele é grisalho e veste um paletó caro. Não ameaça ninguém. Vive inteiramente do olhar. Hoje, voltará para um apartamento modesto mas elegante que ele tem desde a última Grande Guerra, e assistirá a filmes da jovem beldade Brigitte Bardot. Ele vive pelos olhos. Não toca numa mulher há dez anos.[3]

 

O cerne do enredo do livro é o aprendizado dos personagens sobre o processo de formação das culturas e religiões, o aglutinamento dumas culturas por outras, a decomposição e reestruturação mútua que isto gera. “Tudo aqui em baixo é especulação. Todos os mitos, todas as religiões, todas as filosofias, toda a história — tudo isso são mentiras [4]”, assim como os corpos perfeitos não passam de imitações de qualquer coisa. Contudo, Pandora escreve um diário para que um amigo volte a crer que a filosofia e a razão constituem uma ponte através da qual é possível transitar entre os dois mundos.[5] Em sua concepção a meta daquele que não se afasta demasiadamente dum senso de humanidade é manter sua “preciosa razão” e “a consciência num vazio”.[6]

Quando vê seu insensível homem perfeito, Marius chora sangue e alerta: “O que você vê em mim não é evidência de juventude. É algo que está tão longe de qualquer promessa de juventude que só agora estou começando a compreender os sofrimentos que traz”.[7] Pandora estava estupefata com a brancura da pele marmórea e um fulgor de olhos humanamente impossível: “Ele era fortíssimo, duro como uma árvore! Jamais senti uma musculatura tão dura num homem. (...) Duro, duríssimo, mas sem vida. Sem calor de sangue humano nos gestos delicados e ternos. (...) Isso não é disfarce, a luz vem de dentro! (...) Abracei essa estátua dura do homem mais espetacular e singular que jamais vi ou conheci: Abracei-o e dessa vez ouvi as batidas de seu coração, o ritmo distinto delas. Encostei o ouvido em seu peito”.[8]

No fim de tudo a própria Pandora adquire a forma de uma “estátua viva”, branca demais para ser humana, com olhos amarelo-acastanhado, com nuances de dourado. Seus olhos foram ficando cada vez mais como pedras preciosas, de modo que pareça uma cega com topázio no lugar de pupilas, ou “orbes cuidadosamente formados de topázio, safira, até de água-marinha”.[9]

 

Ele tinha muitos espelhos, que, como se sabe, naquele tempo eram apenas metal polido. E fiquei deprimida e confusa pelo simples fato de ter rejuvenescido; meus mamilos estavam cor-de-rosa, como ele dissera; as rugas da idade já não interrompiam os dotes pretendidos de meu rosto ou meus braços. Talvez seja mais preciso dizer que eu fosse atemporal. Atemporal como adulta. E cada objeto sólido parecia estar ali para satisfazer minha nova força.[10]

 

Poucos vampiros são mais antigos que ela e estes assumem um aspecto cada vez mais horrendo do que belo. Ao longo da vida Pandora viu pelo menos mais um humano com uma particularidade que parece encaixar na descrição típica de um vampiro milenar: “O grego só tinha uma perna boa. A esquerda, do joelho para baixo, era de marfim bem entalhado, completa com o pé e a sandália cuidadosamente esculpidos. Dedos perfeitos”.[11]

 

Rainha-abelha

 

Akasha não se move, não fala, nem pisca os olhos, mas Pandora crê sonhar por influência desta rainha que “deve colher recordações como flores apanhadas ao acaso no jardim do mundo”. Isso é especialmente verdade quando a rainha dos vampiros se comunica por trofalaxia.

 

Eu não conseguia imaginar uma coisa dessas quando estava acordada, mas nesses sonhos eu era o monstro que os romanos chamavam de Lamia. Ou assim parecia. O sangue era doce, o sangue era tudo. Estaria certo o velho grego Pitágoras? As almas migram de um corpo a outro? Mas minha alma nessa vida passada havia sido a de um monstro.[12]

 

Antes da transformação, Pandora busca alcançar o êxtase orgástico a fim de compensar com atividade sexual uma súbita sede de sangue que não pode ser satisfeita. Porém nem sempre é fácil encontrar parceiros interessados em entreter uma senhora de 35 anos a troco de nada. Pandora bebe vinho diariamente, tem pesadelos e epifania. Ela imagina que sua alma transmigrou duma vida passada (havendo sido um vampiro negro que morreu exposto ao sol). Mais tarde deixa de crer possuir uma “alma migrante”, vindo a concluir que não há necessidade de reencarnação, nem de destino, nem de “qualquer desculpa milagrosa para nada do que aconteceu”. Simplesmente, quando falta uma explicação racional, qualquer um “pode acabar se refugiando na loucura”.

Pandora não vira hippie porque quer. Ela perdeu os pais condenados por sentença judicial e virou uma refugiada em terras estranhas. Quando se muda para a casa própria – onde não há ninguém que lhe mime e console – ela se debate em surtos de histeria.

 

A verdade é que não se pode preparar ninguém para uma coisa dessas, nem passar uma idéia do que isso seja através da linguagem. É preciso conhecer. (...) Eu estava sozinha. (...) Não existiam deuses. Os filósofos eram tolos! Os poetas cantavam mentiras.

Eu soluçava e arrancava os cabelos. (...) Às vezes, eu sentia uma alegria enorme, uma libertação de todas as falsidades e convenções, todos os meios pelos quais se pode fazer de refém uma alma ou um corpo!

Então a assombrosa natureza dessa libertação me cercou por inteiro como se a casa não existisse, como se a escuridão desconhecesse as paredes. (...) Passei três dias e três noites vagando, rastejando, chorando e gritando.[13]

 

            Depois de tudo Pandora começa a ver vantagens na miséria: “Pensei em como seria a pessoa se desligar completamente da civilização e nunca mais tornar a se preocupar com a posição de uma faixa ou de um grampo, dormir na relva, nada temer!”[14] Claro que, sendo vampira, a personagem não deveria ser de fato uma mendiga ou prostituta sagrada. Pandora tem ouro escondido por toda parte. O suficiente para se encantar por uma caneta esferográfica preta e um caderno de papel com linhas para caligrafia crendo serem objetos caros.

 

 

Notas:

 

[1] RICE, Anne. Pandora. Trd. Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p 154.

[2] RICE, Anne. Pandora, p 175.

[3] RICE, Anne. Pandora, p 10.

[4] RICE, Anne. Pandora, p 201.

[5] RICE, Anne. Pandora, p 21.

[6] RICE, Anne. Pandora, p 24.

[7] RICE, Anne. Pandora, p 121.

[8] RICE, Anne. Pandora, p 123-125.

[9] RICE, Anne. Pandora, p 11.

[10] RICE, Anne. Pandora, p 162.

[11] RICE, Anne. Pandora, p 76.

[12] RICE, Anne. Pandora, p 55.

[13] RICE, Anne. Pandora, p 68-69.

[14] RICE, Anne. Pandora, p 132.

 

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